segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A Epopéia de Guilgamech

-À proto-história de Uruk associa-se também este belíssimo poema, talvez o mais importante e o mais famoso da literatura da Mesopotâmia. O texto de que dispomos, ou, pelo menos, o mais completo, é aquele encontrado por Rassam e Smith na biblioteca de Assurbanípal, e é, portanto, uma versão assíria tardia. Por isto, os nomes dos deuses (Chamach, Ichtar, Bel, e assim por diante) são semitas; mas os dos nossos heróis e os lugares da ação são sumérios. Portanto, é certo que o poema tem suas raízes na época de Uruk, permitindo assim conhecermos os usos e costumes dos antiqüíssimos habitantes desta cidade.
A epopéia é gravada em doze tabuinhas de argila, que narra a história de Guilgamech, rei de Uruc, criado pelos deuses. Eles lhe conferiram beleza, inteligência, coragem, força... Era dois terços deus e um terço homem. Como o rei era mesmo o máximo entre seu povo, verdadeiramente onipotente, não foi difícil vestir-se de arrogância. Dono de um insaciável apetite sexual, era ele quem desvirginava as donzelas antes dos maridos.
O povo, não suportando mais os poderes ilimitados de seu rei, suplicou aos deuses a criação de um outro ser para rivalizar com Guilgamech. Assim nasceu Enkidu, por quem o rei de Uruc acabou se apaixonando. Quando Enquidu morreu, Guilgamech chorou sua morte como a de uma amante.


Tábua I

“Senhor da Terra, Ele via todas as coisas; os abismos da sapiência se escancaravam à frente dele, e nunca se viu homem como ele em força e beleza.” Grande caçador de leões, “agarra-os pela juba e os trespassa”.
Assim é apresentado, logo de início, o herói Guilgamech, que é dois terços divino e um terço homem. E o Ensi que cercou Uruk de poderosos muros e ali construiu um templo “que se ergue como uma montanha”, um imponente celeiro e um magnífico “palácio branco”.
“A sua palavra e o seu juízo deitam lei sobre a cidade, e seus súditos o observam com temor e admiração.”
Não obstante, este belíssimo e altíssimo é um tanto ativista demais, “nunca se detém” e quer que “a magnificência de Uruk resplenda sobre todas as outras cidades”. Em conseqüência impõe a todos, jovens e velhos, homens e mulheres, um trabalho sem cessar. E são sobretudo as mulheres que por fim elevam vibrantes protestos “aos grandes deuses, senhores de Uruk”. O deus Anu reconhece que seus lamentos são justos e encarrega a deusa criadora Aruru de plasmar um indivíduo que possa distrair o superzeloso Guilgamech, um ser que seja tão forte quanto ele, “mas que não seja um animal do deserto”.
Aruru toma um pouco de argila, molda-a, cospe em cima e surge “um herói animado do alento e do sangue de Ninib, deus da Guerra”.
Esta força da natureza se chama Enquidu e, à primeira vista, tem um aspecto que não é lá muito atraente. Hirsuto, “seus cabelos se alongam como o trigo”, veste-se com peles e come a grama junto com as gazelas; bebe com as manadas e se joga nos rios a brincar com os peixes. Toma-se pois o protetor de seus amigos animais, arrebenta as redes e inutiliza as armadilhas dos caçadores. Assim sendo, campo e deserto tomam-se uma espécie de Parque Nacional, fechado a qualquer atividade venatória.
Obviamente, os caçadores se cansam disto, até que um deles consegue perceber um dia, junto ao rio, aquele estranho indivíduo “que se assemelhava a um demônio dos montes”. Vai falar com o pai, que o aconselha a tomar emprestada do soberano uma bela moça, e mostrá-la nua, “a fim de que o homem se aposse de suas belas formas, expostas”. Assim, disse, tera alguma coisa diferente em que pensar.
O caçador vai ao Ensi, conta-lhe tudo sobre aquele cabeludo gigante, e como “e tremendo o seu aspecto”, tanto que ninguém ousa aproximar-se. Guilgamech lhe dá permissão de conduzir imediatamente “uma bela mulher” do sagrado templo de Ichtar. Depois de três dias, os dois chegam ao olho d’água. O caçador abandona a mulher ali e tudo se cumpre segundo as previsões: “Enquidu conheceu a mulher por seis dias e seis noites, e se uniu a ela com amor
Mas eis que “quando estava saciado com a opulenta beleza dela”, Enquidu percebe que seus amigos animais fogem dele. Maravilhado, volta um olhar interrogativo a companheira que, exteriorizando todas as artes da persuasão, lhe diz: “Enquidu, és belo como um deus; porque queres correr pelos campos como um animal selvagem? Vem comigo a Uruk, vem ao sagrado templo, ao esplêndido palácio de Guilgamech, o herói perfeito, possante como um touro, sem igual entre os homens”. Enquidu se deixa convencer: “Quero enfrentá-lo, quero desafiar em alta voz aquele forte, quero anunciar a toda Uruk que também eu sou forte”.
E segue a mulher, a qual, chegando à cidade, onde ambos são acolhidos com grandes festejos, o torna um pouco mais apresentável, colocando-lhe “um traje de festa”, e oferecendo-lhe depois pão e vinho. Uma vidente lhe vaticina o desafio com Guilgamech, cujos olhos “rebrilham como o Sol, e cuja grande estatura exibe músculos duros como o metal”.

Tábua II

Enquidu, bem limpinho e penteado, sai do templo e a sua descomunal estatura desperta a admiração da turba. Mas depois de uns poucos passos, coloca-se ao centro do portâb de entrada, impedindo a entrada de quem quer que seja. Os guardas tentam desalojá-lo, mas basta uma olhada sua para fazê-los bater em retirada.
E eis que vem Guilgamech para celebrar as sagradas núpcias de Ano Novo. Os dois se observam, Enquidu não se afasta e a luta é inevitável.
Guilgamech o agarra, ergue-o e o afasta da porta, mas a luta continua até que “o rei abraça seu adversário como se fosse uma mulher e o derruba, colocando-se sobre ele”. Depois o levanta e o arremessa aos pés da rainha-mãe. O povo o aclama, enquanto Enquidu lança um urrono desesperado. Levanta-se, “deixa cair os braços a seu lado e seus olhos se enchem de lágrimas”.
A rainha se comove, pega suas mãos e diz, benévola: “És meu filho e te gerei hoje mesmo; sou tua mãe, e este — indicando Guilgamech — é teu irmão”.
Enquidu, por sua vez, comovido, responde: “Mãe, nesta luta, encontrei um ir-mão”, ao que faz eco o rei: “Es meu irmão, luta agora ao meu lado!” E lhe propõe sua primeira empresa heróica. Muito longe, a custodiar a Floresta Sagrada dos cedros, que circunda a morada dos deuses, o deus Bel tinha colocado um temível guardião de nome Khumbaba, cuja voz “assemelha-se ao troar da tempestade; seu hálito faz agitar as ramagens, seu resfolegar provoca um tremendo trovejar”. Este guardião, porém, já há algum tempo permitia-se algumas liberdades e tinha assumido o hábito de sair do bosque para aterrorizar o povo, matando quem quer que se encontrasse em seu caminho: “Os fortes também caem sob suas mãos”.
“O coração — diz Guilgamech — me sugere enfrentá-lo e matá-lo.” Enquidu não deixa transparecer qualquer perplexidade, e decidem de imediato partirem juntos.

Tábua III

Entretanto, Enquidu tem uma terrível saudade de seus animais: se lamenta em altas vozes, até que subitamente, abandona a vida cômoda e desaparece nos campos. Guilgamech, profundamente entristecido, reúne a Assembléia dos Anciãos: “Estou triste, choro por Enquidu! De que me servem o machado, o dardo, a espada, o traje de festa? Não tenho mais alegria. Enquidu, meu dileto amigo, deixou-me e maldiz a mulher que o seduziu. Ele deveria repousar sobre ricos tecidos e habitar num palácio situado à minha esquerda; os grandes da terra deveriam beijar-lhe os pés, e todos os homens deveriam colocas-se a seu serviço. Quero que todo o meu povo leve de tudo para ele, enquanto que eu mesmo, coberto de uma pele de leão, irei procurá-lo por toda a planície”.

Enquidu, entrementes, está só e desesperado, amaldiçoando a mulher e o momento em que se deixou convencer a segui-la e “tornar-se estranho aos animais”. Mas Chamach, deus do Sol, o reprova, relembrando-lhe os benefícios recebidos daquela mulher “que te deu à mesa comidas e bebidas que só os reis recebem, fez-te dono do traje de festa e do cinto, propiciou-te a amizade do magnífico Guilgamech. O povo de Uruk está de luto por ti, e Guilgamech te procura por toda parte!”
A estas palavras, adoça-se o coração de Enquidu e quando aparece o amigo, resplandecente como o ouro”, segue-o. Mas a calmaria dura pouco: Enquidu conta a Guilgamech um horrível sonho. “O céu urrava e a terra lhe respondia, tremendo (. . .) Enfrentei um homem forte, de semblante escuro como a noite, de aspecto semelhante a uma repugnante hiena, mostrando os dentes; tinha asas poderosas e garras de abutre. Apanhou-me, fazendo-me afundar com todo o seu corpo numa terrível voragem, e me comprimia com o seu peso, tal como uma montanha”. No fundo do abismo, encontrou-se no limiar do “Reino de lrcalla, de onde ninguém que entra, sal”. Ordena-lhe o monstro: “Vai pela estrada da qual ninguém pode sair, entra na casa sem luz, onde os habitantes se alimentam de pó e lama, têm asas de morcego, são cobertos de plumas como o mocho, e residem nas trevas!”
Enqutdu adentra o Reino dos Mortos, onde ninguém mais leva a tiara real, e quem costumava sentar-se sobre o trono e dominar a terra, agora está humilhado; os grandes e os servos são todos iguais, e dominados por Erechquigal, rainha dos Infernos; a seus pés, uma escrivã registra os nomes na argila. Erechquigal levanta a cabeça e ordena: “Escreve-me também o nome dele”.
Guilgamech conforta o amigo, agora estremecido pelo sonho angustiante, faz o ritual de esconjuros “contra o maligno espírito da morte”, oferece ao deus Sol uma taça de mel “e deixou que o deus a lambesse”.

Tábua IV

Chamach, a quem muito agradou a oferenda, incita os dois a enfrentar sem piedade a Khumbaba, e Guilgamech, reunido o Conselho dos Nobres, parte com Enquidu, de quem a rainha se despede afetuosamente: “Enquidu, és a minha alegria; protege agora Guilgamech!”
Chegam à floresta de cedros e o primeiro com que se defrontam é um guarda:
“Vinde, adiantai-vos, para que eu possa dar vossos corpos de pasto aos abutres!”. Mas não obstante tenha sobre si “sete mantos enfeitiçados”, acaba sendo morto.
Enquidu logo exorta Guilgamech à prudência; já é tarde, e faz-se noite, é melhor acampar e esperar pela manhã. “Não sejas fraco, timorato e vil, ó amigo. Devemos continuar e depressa enfrentar Khumbaba. Já não matamos seu guarda? Não somos mestres na arte da guerra? Reforça tua confiança em Chamach e não mais sentirás medo ... .). Combateremos juntos (. . .); todos os países da terra cantarão em nosso louvor.” E prosseguiram o caminho.

Tábua V

Os dois heróis detêm-se, em silêncio, fascinados pela esplêndida floresta, estupefatos pela grandeza das árvores, das calmas alamedas, das flores odoríferas, e “viram a montanha dos cedros, morada dos deuses, e o sagrado templo de lrnini (Inanna)” em frente ao qual “os cedros se acumulavam, exuberantes”. Avançam durante horas, o sendeiro se faz cada vez mais íngreme “até que a noite caiu sobre o bosque, apareceram as estrelas e os dois heróis se deitaram para dormir”.
Novos íncubos agitam o sono de Enquidu. À aurora, retomam a marcha para o topo do monte e caminham durante “trinta horas”.
“A sagrada torre da deusa Irnini se erguia com nítido alvor” quando eis que, de improviso, depois de um furioso agitar das folhagens, apresenta-se perante ele a assustadora figura de Khumbaba “com patas iguais às de um leão, o corpo coberto de escamas de bronze, a cabeça eriçada de cornos de búfalo selvagem, com o membro viril e a cauda terminando em forma de cabeças de serpente”.
Guilgamech encomenda a alma a Chamach, e os dois lançam contra o monstro todas as suas flechas, “mas elas caíam inertes, sem feri-lo”. Khumbaba enterra suas garras em Enquidu, que, debatendo-se furiosamente, o faz cair. Guilgamech, fulmíneo, empunha o machado e o decapita. Seu corpo é arrastado para uma clareira, como pasto para os abutres, e “enfiada a cabeça de Khumbaba numa longa haste, carregaram-na em sinal de triunfo” .
Exultantes, sobem o monte, atingindo seu cimo. Aí, porém, são detidos pela peremptória voz de Irnini: “Nenhum mortal pode chegar ao alto do monte, sede dos deuses, pois quem viu a face dos deuses, deve morrer. Já cumprístes a vossa empresa, agora voltai, e dirigi vossos passos para Uruk”. Só restava obedecer e os nossos heróis tomaram o caminho do retorno “através dos precipícios e vias tortuosas, lutando com os leões e tirando-lhes a pele”.
E “quando vem o dia da Lua Cheia”, Guilgamech pisou no umbral de Uruk “trazendo, transfixada em sua lança, a cabeça de Khumbaba”.

Tábua VI

Tendo chegado triunfa]mente ao palácio, o rei “lavou suas armas, penteou seus cabelos, tirou as roupas sujas de sangue, vestiu uma roupa limpa e o manto real, e pôs em sua cabeça a coroa”.
Vendo-o em todo o seu esplendor, a deusa Ichtar “ardendo de desejo”, propõe lhe tomar-se sua amante, prometendo-lhe em troca riqueza e poder sem limites.
Mas Guilgamech a desdenha: “Desprezo o teu corpo cheio de fascínio, recuso o teu pão (. . .); as tuas artes são quentes, mas o teu coração é gelado. Onde está o amante que amarias para sempre? Ao teu jovem amante Tamuzu (Dumuzi), deus da Primavera, só reservaste o pranto, ano após ano; depois, arranjaste um jovem pastor, quebraste-lhe as asas e agora ele vaga em lágrimas pelos bosques (. . .) Passaste a um outro pastor e, com o bastão, fizeste um lobo. Hoje, os outros pastores o ameaçam e seus próprios cães o mordem”. Recorda-lhe enfim a fracassada tentativa com um certo Uchalanu que Ichtar convidou um dia para “comer a comida dos deuses”. Mas Uchalanu respondeu: “Que queres de mim? Minha mãe me preparou a comida, e eu a comi; por que queres que eu experimente manjaxes que me levariam à ruína e que se transformariam em cardos e bolotas?”
A deusa, furiosa, o transformara num animal da lama.
“Ora — conclui Guilgamech —, queres meu amor para reservar-me o mesmo tratamento.”
Ichtar, acometida de ira, sal pelos céus e pede vingança por este ultraje ao deus Anu, o qual deve admitir que Guilgamech exagerou um pouquinho, pelo que a deusa lhe pede que crie “um enorme touro que aterrorize Guilgamech”. E se nao for atendida, ameaça “golpear o deus Anu com terrores e assombros”, e para tanto descerá aos infernos, abrirá todas as suas portas, “até que todos os demôaios e mortos saiam e venham à terra; e os mortos já são muito mais numerosos que os vivos!” Anu, depois de tê-la advertido que este tipo de vingança acarretará sete anos de carestia, pergunta-lhe: “Há trigo suficiente nos celeiros? Há feno suficiente para o gado?”
Ichtar garante que tudo está em seu lugar. Anu então faz surgir “da montanha dos deuses um touro imenso e o envia a lJruk”, onde devasta os campos e arrasta algumas centenas de homens; até que Enquidu consegue agarrá-lo firmemente pela cauda, “e Guilgamech afunda a sua espada no peito do touro que cai, estertorando”.
Enquidu se congratula com o amigo: “Amigo, demos nova glória aos nossos nomes, agora que matamos o touro do céu!” Cumprida a empresa, os dois heróis se prosternam perante Chamach; repousam nos muros da cidade, do alto dos quais Ichtar, fora de si, lança as piores maldições contra Guilgamech. Enquidu então arranca uma coxa do touro e lança-a ao rosto da deusa, gritando: “Ah, pudesse eu tê-la entre as mãos! Faria contigo o que fiz com o touro e a enrolaria em suas tripas!”
Os dois, logo após, lavam suas armas no Eufrates e a nova aventura termina com grandes festej os.

Tábua VII

Enquidu continua a ter seus pesadelos e conta a Guilgamech um terrível sonho: uma águia, depois de te-lo agarrado, o levava sempre mais alto, e ao fim, quando toda a terra parecia “pequena como uma papa de farinha e o oceano, como uma vasilha”, amolecia a presa, fazendo-o cair. “Precipitei-me, e fiquei jazendo na terra com os ossos quebrados. Este foi o meu sonho e agora estou molhado de suor, por causa do susto.” Desta vez, Guilgamech adivinha o funesto presságio:
“Um espírito te aferrará com as suas garras; os deuses decidiram causar uma desgraça! Deita-te, pois tua testa arde” e, sentado à sua cabeceira, o assiste e o conforta por dias e dias.

Tábua VIII

O estado de Enquidu se agrava; “o seu peito se alçava silencioso e silencioso se abaixava”. O amigo, chorando, o invoca: “Enquidu, meu jovem amigo, onde está a tua força, onde está a tua voz? Onde está o meu Enquidu? Eras forte como um leão, veloz como uma gazela; te amava como a um irmão; todas as belas mulheres de Urnk te amavam; juntos matamos o touro celestial, e seu alento maléfico não pôde te afetar, mas agora os grandes deuses não querem perdoar a ofensa a Ichtar nem a morte do touro por eles enviado!”
Enquidu exala o último suspiro e agora Guilgamech, coberto o cadáver de seu amigo “como se fosse o de sua esposa”, desafoga livremente sua desesperada dor. “Urrou como um leão, urrou como uma leoa atingida por flechas, arrancou os cabelos e os esparramou à volta, rasgou as vestes e envergou uma empoeirada túnica de luto.” Lamenta o amigo querido por seis dias e seis noites, ao sétimo o sepulta e depois vaga sem conforto pelos campos. Encontra um caçador, o qual, estupefato com seu aspecto, lhe dirige a palavra: “Nobre Senhor, matastes o enfurecido guarda da floresta dos cedros, matastes até mesmo Khumbaba; matastes com as mãos os leões dos montes e vencestes o poderoso touro enviado pelo deus do Céu. Por que estão tão pálidas e emaciadas as vossas faces? Por que há tristeza em vosso semblante? Que coisa é que perturba o vosso ânimo e dobrou vossa alta estatura? Por que vosso coração está cheio de lamentos? Por que correis sem paz?”
Responde Guilgamech: “O amigo querido que era ligado ao meu coração, Enquidu, a pantera da planície, o meu amigo, o bravo companheiro das minhas aventuras, que dividiu comigo todos os sofrimentos, foi golpeado pelo destino de todo homem. Como posso calar minha dor? Quero gritar, para que todos ouçam! O amigo que me era tão caro, tornou-se pó; Enquidu, o meu amigo, tomou-se como argila. Deverei eu também jazer como ele, sem nunca mais ressurgir, por toda eternidade?”

Esta última pergunta propõe o tema da segunda parte da epopéia, totalmente diversa da primeira. Fecha-se o ciclo das aventuras heróicas e inicia-se o poema do herói lastimoso na vã e desesperada busca da imortalidade.
Guiigainech continua o pranto pela morte do amigo, mas também porque a idéia da morte não o deixa. Portanto decide-se a buscar “o potente Utnapichtim, que encontrou a vida eterna”.
Enceta a jornada, e depois de dias, pela manhã, vê destacar-se no horizonte uma alta montanha “denominada Machu, e composta de dois altos picos que sustentam o céu; entre os dois picos se abre a porta através da qual sai o Sol”. A porta é vigiada por dois gigantes’meio homens e meio escorpiões.
Um deles pergunta o porquê de seu triste aspecto e o objetivo de sua viagem. Guilgamech responde que quer ter com Utnapichtim, seu “antepassado que soube entrar para a Assembléia dos deuses, procurou e encontrou a vida; quero inteirogá-lo sobre o Destino e sobre a Vida”. Rebate o vigia: “O sendeiro que passa por entre estas montanhas não pode ser percorrido pelo pé dos mortais, ou de Guilgamech; ninguém jamais conseguiu franqueá-lo”,e lhe descreve brevemente o que o espera: uma obscura e escarpada garganta, que o Sol atravessa “quando ilumina os países e para onde retorna quando volta de sua viagem noturna pelo oceano do Céu (...) Atrás das montanhas se encontra o mar que circunda os paises da terra. Não podes percorrer o caminho do Sol, porque este conduz ao reino dos deuses (...). O teu antepassado Utnapschtim habita-o também lá em cima, perto da desembocadura da corrente, além das águas da Morte, mas não há barco que possa levar-te à outra margem”.
Guilgamech não se dá por vencido e o gigante, admirado com tanta coragem, lhe dá passagem, advertindo-o que deverá percorrer “uma garganta horrenda, completamente obscura, que dura dez horas duplas” e faz votos para que possa percorrê-la são e salvo. E Guilgamech adentra “pelo caminho do Sol”.

Tábua IX

“As trevas eram profundas e não havia o menor vislumbre de luz. Ele não conseguia distinguir nem o que estava atrás nem o que estava mais à frente”. Por fim, transcorridas as “dez horas duplas”, lobriga de longe um clarão: a garganta se abre, penetra um tênue ralo de Sol e, fma]mente, a luz. Perante Guilgamech se estendiam agora os esplêndidos “jardins dos deuses”; os frutos eram de rubi, pendiam magníficos cachos de uva, “uma outra árvore era coberta de lápis-lazúli. O herói ergue os braços ao Sol: “O meu caminho foi longo e fatigante! Tive de matar os animais da floresta, cobrir-me com suas peles, nutrir-me de suas cames! (.. .) Mostrai-me agora o caminho que conduz ao distante Utnapichtim, guia-me ao barqueiro que me levará a salvo além do Oceano do Mundo e das Àguas da Morte, a fim de que eu possa informar-me sobre a vida!” Chamach o admoesta: “Para onde corres, ó Guiigamech? Jamais encontrarás a vida que procuras!” Mas o herói lhe suplica, e Chamach lhe indica um caminho possível: “Procura Siduri-Sabitu, a sábia senhora da Montanha Celeste, ela está sentada sobre um trono no jardim dos deuses, junto ao Oceano, e custodia a Árvore da Vida. Ela poderá indicar-te o caminho para alcançar o distante Utnapichtim”.
Guilgamech retoma o caminho “através do maravilhoso jardim, onde as pedras preciosas são numerosas como alhures os cardos e as bolotas”.

Tábua X

O herói chega a Siduri-Sabitu. “Ele estava recoberto de peles de animais selvagens; a sua figura era assustadora, seu corpo era o de um deus, mas seu coração estava cheio de dor.” A deusa, não gostando nada do que via, trancou-se dentro de sua casa. Guilgamech ameaça arrombar a porta, e Siduri-Sabitu lhe pergunta então o porquê de seu aspecto tão macilento e o objetivo de sua longa viagem. À sua resposta, lhe repete: “Nunca encontrarás a vida que procuras”, e acrescenta:
“Quando os deuses criaram os homens, estabeleceram para eles a morte, e guardaram a vida para si”, e o aconselha com fervor a gozar a vida tal como ela é, que, no fundo, é bela, e voltar para Uruk, onde todos o amam e o exaltam.
“Basta! — interrompe-a Guilgamech. — Mostra-me o caminho que conduz ao distante Utuapichtim; se possível, atravessarei o mar, se não, caminharei ao longo do litoral.” Siduri-Sabitu o faz notar que, exceto pelo Sol, ninguém pode navegar pelas Águas da Morte, que se estendem perante aquela longínqua praia”. Mas naquele exato momento aporta o barqueiro de Utnapichtim, que tinha vindo procurar ervas e frutas no bosque. “Vai falar com ele; se for possível, atravessa o mar com ele; se não, volta para o lugar de onde vieste.”
Guilgamech entra no bosque e chama em alta voz o barqueiro, mas ninguém lhe responde. Furioso, arrebenta algumas caixas cheias de pedras que estavam na barca, e por fim encontra o homem, Ur Chanabi, e pede-lhe que o leve até seu patrão. Este observa que, tendo destruído as caixas, tornou isso impossível. De fato, estas, lançadas à água, serviam para ajudar na navegação pelas Águas da Morte. Mas sena posssvel aliviar o problema se Guilgamech, para substituir as pedras, abatesse “cento e vinte troncos” e, aparados, os embarcasse. O herói prontamente cumpre o novo trabalho e os dois, com aquela carga, atravessam “as ondas turbulentas e velejam rápidos como o relâmpago”. No terceiro dia, chegam às Aguas da Morte, e chegam às suas margens. Ur Chanabi ordena ao passageiro: “Toma o machado e enfia os troncos no fundo do mar, mas as Aguas da Morte não devem tocar tuas mãos, para que não morras”.
Quando todos os cento e vinte troncos foram usados, “impeliram a barca com aqueles paus”.

Utnapichtim, ao longe, percebe o desconhecido e pergunta, consigo mesmo:
“Por que desapareceram as caixas de pedras? Por que agora se encontra na minha barca alguém que não tinha permissão para entrar nela? Esse que está chegando não pode ser um mortal”. Perscruta melhor e dá-se conta que ele em tudo lhe é semelhante, vai ao seu encontro e o interpela: “Diz-me teu nome, sou Utnapichtim, aquele que encontrou a Vida”.
O rei se declara felicíssimo em conhecê-lo, por fim; e conta-lhe da sua dor, a travessia a fim de alcançá-lo e o escópo da visita: “Quero destruir os espíritos da morte, para que acabe a alegria deles! Ó Utnapichtim, fala-me como obter a vida eterna, tu que a obtiveste!”
“Deixa de lado os lamentos e a ira — responde Utnapichtim —, a sorte dos deuses é diversa da dos homens. Teu pai e tua mãe te criaram homem; mesmo que tua natureza seja dois terços divina, o terço de ti que é humano te impele rumo ao Destino dos homens. A morte põe termo a toda vida. Porventura são eternas as casas, os pactos, as heranças paternas? (...) Desde o início dos seus dias, fica estabelecido que toda coisa tenha fim: o natimorto e o morto, não se assemelham, assim? Não são idênticos os sinais da morte? (. . .) Os deuses estabelecem os dias da vida, mas não contam os da morte!”

Tábua XI

“Observando-te, Utnapichtim, vejo que não és maior nem mais alto que eu, e te assemelhas a mim como um pai ao filho. Também tu és um homem! Mas não tenho paz, fui criado para lutar; tu, ao invés, conseguiste subtrair-te à luta e quietamente repousas. Diz-me, pois, como pudeste entrar para a assembléia dos deuses e encontrar a vida?”
“Quero. desvelar-te, ó Gui]gamech, uma história oculta, um segredo dos deuses. Churrupak é uma cidade antiqUíssima, e por longo tempo os deuses lhe foram benignos, mas depois decidiram fazer descer sobre a terra um dilúvio. No conselho dos deuses estava também presente Ea (Enqui), o deus do Abismo, e ele confiou à minha casa, feita de canas, esta sentença dos deuses.” E narrou como Enqui o exortara a abandonar seus bens, salvar a vida e construir uma embarcação capaz de carregar a semente da vida de cada espécie. “Construa rápido o barco e leve-o no mar de águas doces, carregando-o com o que for necessário.”
“Preparei então madeira e piche, desenhei o plano do barco e nele desenhei vários sinais. Todo meu povo contribuiu na construção.”
Quando a nave ficou pronta, “carreguei nela tudo o que possuía: prata, ouro e sementes de vida de toda espécie; fiz entrar toda minha família; carreguei as bestas grandes e pequenas; ordenei, por fim, que tomassem lugar os artesões versados nas diversas artes”.
“Os espíritos das trevas verteram depois sobre a terra uma chuva torrencial; eu fiquei observando a tempestade, assustadora de se ver. Quando despontou a aurora, ergueram-se nuvens negras como corvos; os espíritos do mal estavam endiabrados, e toda luz se transformou nas trevas mais densas; soprava impetuoso o vento do meridião, as águas revoltas alcançaram os montes, desabando sobre os homens. O irmão não reconhecia mais o irmão; até mesmo os deuses tiveram medo do furacão e correram a refugiar-se sobre a Montanha Celeste de Anu, encolhendo-se como cães assustados. Ichtar, presa de agonia, gritava: ‘O belo país se transformou em lama pelo meu mau conselho; como pude sugerir tamanha maldade? Como pude pensar em exterminar a minha gente? Eis que agora a correnteza abate os homens como no furor da batalha (...) .
‘Todos os homens tomaram-se lama, a terra estava uniforme e deserta. Abri a janela do barco e a luz atingiu meu rosto; prosternei-me, depois sentei-me e chorei com lágrimas copiosas; observei aquele grande deserto de água, exclamei que todos os homens estavam mortos. Depois de doze horas duplas vi despontar no horizonte uma ilha: a minha nau estava sobre o monte Nissir. Ela ficou encalhada sobre o monte Nissir durante seis dias; no sétimo, tomei uma pomba e deixei-a partir, mas retornou, não encontrando nenhum lugar onde pousar. Tomei um corvo e o deixei partir; voou para longe, pois que as águas estavam baixando, comeu, esgaravatou a terra e não retornou. Então deixei que todos os animais saíssem e sacrifiquei um cordeiro; espargi alguns grãos sacrificiais sobre o topo do monte e queimei alguns ramos de cedro e mirto. Os deuses aspiraram o fumo que enchia de prazer as suas narinas e reuniram-se em torno do sacrifício como moscas.”
Os deuses reprovaram a Bel por ter suscitado toda aqueia devastação: se queria punir os homens por alguma ofensa, podia soltar sobre a terra alguns leões ferozes, ou monstros, ou provocar uma carestia, mas não destruir toda a humanidade. Bel, porém, de modo algum se arrependeu, mas ficou agastado ao ver aquela embarcação: “Quem é esse mortal que conseguiu escapar ao seu destino? Ninguém deve sobreviver ao meu juízo”. Mas Enqui vai sobre a nave e diz a Utnapichtim as seguintes palavras: “Até agora, Utnapichtim, eras um homem mortal; deste momento em diante, tu e tua mulher sereis semelhantes a nós e habitareis longe, perto do mar onde desembocam os rios”.
E foi aqui que Guilgamech veio a encontrálos.
Utnapichtim prossegue: “Mas que deus terá piedade de ti e te levará para junto dele, para que possas encontrar a vida que procuras?” E o desafia a ficar, como ele, seis dias e seis noites sem fechar os olhos.
Guilgamech, ao invés, esgotado, se senta e adormece de súbito, profundamente. Ao seu despertar, Utnapichtim o lava, veste, restitui-lhe beleza e vigor e faz com que Ur Chanabi o acompanhe.
Todavia, a mulher de Utnapichtim é tomada de pena pelo herói que depois de tantas tribulações volta de mãos vazias, sem ter encontrado nada do que procurava e lhe oferece uma possibilidade: existe uma planta milagrosa que cresce no fundo do mar e “que tem o aspecto de uma ameixeira”. Se conseguir pegá-la e alimentar-se dela encontrará a vida e a eterna juventude.
Guilgamech amarra duas grandes pedras às pernas, e deixa-se afundar no mar; encontra a planta, agarra-a, e emerge tendo na mão “a flor maravilhosa do mar”;
depois, dando gritos de alegria, diz a Ur Chanabi: “Eis a planta! Eis a planta que dá a vida! . Quero levá-la aos sólidos muros de Uruk, quero que comam dela todos os heróis, quero dividi-la com muitos outros! Esta planta se chama ‘de velho torna-se jovem’; quero comer dela e reaver toda a força da minha juventude!”
A barca navega por “vinte horas duplas” até dar numa pequena praia. Ali perto há um lago fresco e Guilgamech entra nele para restaurar-se. Mas eis que “uma serpente sentiu o perfume da planta miraculosa, aproximou-se, rastejante, e a devorou’ ‘ -
Guilgamech senta-se sobre a margem e irrompe num pranto desesperado. Volta a Uruk, levando consigo Ur Chanabi, a quem dá de presente um pedaço de terra.



Tábua XII

Mas não tem paz: consulta magos e adivinhos, quer ver o espírito de Enquidu, quer interrogá-lo sobre o destino dos mortos. O Sumo Sacerdote o adverte: “O Guilgamech, se queres ir ao Reino dos Mortos, é preciso que uses uma veste suja, não deves ungir-te com óleos perfumados, que atrairiam os espíritos malignos; não deves pousar na terra o teu arco, porque serias logo atormentado por aqueles que matastes; não deves levar o cetro, para não repelir os espíritos dos mortos; não deves calçar sandálias para que teus passos sejam silenciosos”.
O rei, vestido de trapos, dirige-se para “o grande deserto onde se abre o umbral do Reino dos Mortos”. Junto às portas dos infernos, grita furiosamente. O guardião, intimidado afinal abre a porta. Depois se cumpre o rito de despojar-se da indumentária, através das “sete portas duplas”, até que o herói se encontra nu perante Erechquigal, suplicando a ela que o deixasse ver Enquidu.
“Volta para o lugar de onde vieste, não podes ver quem está morto; ninguém te chamou.” Tristemente, Guilgamech refaz o caminho inverso, retoma suas vestes “e colocou-se junto às águas profundas, suplicando a Enqui, o sábio deus do Abismo” que lhe fizesse aparecer a sombra de Enquidu.
Enqui se dirige a Nergal, deus dos mortos: “Faz uma abertura no chão e conduz para o alto o espírito de Enquidu para que possa falar com Guilgamech, seu irmão”. Os dois heróis se reconhecem, mas precisam ficar à distància. Guilgamech pede ao amigo que lhe desvele a lei da terra dos mortos; a sombra de Enquidu “tremia com a resposta”.
“Não posso desvelar-te; se te falasse, sentar-te-ias para chorar.” Mas Guilgamech insiste e Enquidu lhe desvela a terrível verdade: “Vê agora! O amigo que te alegrava está devorado por vermes como um farrapo, Enquidu, o amigo que tua mão tocou, tornou-se como argila, está cheio de pó; tornou-se pó!”
E desaparece. Guilgamech retorna a Uruk, onde “o templo da Montanha Sacra" se erguia alto. O rei se estende para dormir e a morte o alcançou na esplêndida sala do seu palácio.

Fim.

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