quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Relíquias: Pedaços de fé

Situadas num campo fronteiriço entre a fé e a superstição, as relíquias são encaradas com muita cautela pela Igreja. Com o propósito de evitar abusos, o Vaticano instituiu uma espécie de selo de autenticidade para as relíquias dos santos e para as de Cristo. Mas em muitos casos prefere não se intrometer para não ferir suscetibilidades.

A Catedral de Colônia, na Alemanha, por exemplo, abriga a suposta tumba dos três reis magos, os peregrinos que segundo as Escrituras visitaram a sagrada família por ocasião do nascimento de Jesus em Belém. "Sabemos que nem reis eles eram e é pouco provável que seus restos mortais estejam realmente na igreja", diz o historiador monsenhor Maurílio César de Lima. Na Igreja de Santa Maria Maior, em Roma, reside outra relíquia de origem ainda mais nebulosa, as tábuas da manjedoura onde Jesus foi colocado ao nascer. Uma delas contém inscrições em grego do século VIII. Mesmo sem confirmação de autenticidade, esse pedaço do presépio atrai a atenção de milhares de fiéis.

"As relíquias tinham um cunho político e econômico", explica o especialista em história da Igreja Eduardo Hoornaert. "Eram usadas para aumentar o prestígio das igrejas e atrair mais fiéis." Foi tudo uma espécie rudimentar de marketing que as paróquias faziam. Sem ferir sua doutrina, o cristianismo soube lançar mão de artifícios desse tipo para triunfar no mundo. A origem do culto a Nossa Senhora, mãe de Deus, por exemplo, está relacionado com a devoção às deusas do lar, tradição que os romanos herdaram dos gregos. Os primeiros líderes cristãos usaram o culto a Nossa Senhora para contrapor a essa prática pagã. Martinho Lutero costumava argumentar contra a devoção às relíquias na época da reforma protestante dizendo que só na Alemanha havia 26 túmulos para apenas doze apóstolos. Lutero brandia o argumento de que com a madeira que se acreditava ter sido parte da cruz de Cristo dava para construir um navio de guerra. Hoje, quando os navios de guerra não são mais feitos de madeira, pode-se dizer que existem cruzes tidas como autênticas em quantidade suficiente para encher várias cargas de caminhão. As relíquias de Cristo, por serem as mais valiosas e as mais remotas, são também as que têm sua autenticidade mais questionada. Além da cruz, existem pelo mundo diferentes versões dos cravos da crucificação, de espinhos da coroa, do véu com que Verônica enxugou o rosto de Cristo no caminho do Calvário – e até da coluna onde Jesus foi amarrado para ser açoitado.

Despojos e objetos dos santos, as relíquias são cultuadas desde os primeiros anos do cristianismo. Sua origem está associada ao costume dos cristãos que se reuniam para rezar em torno dos túmulos dos mártires. No século IV, Helena, mãe de Constantino, o imperador romano que reconheceu o cristianismo, fizera trazer de Jerusalém o que considerava ser a cruz em que Cristo foi crucificado. A lenda conta que ao cabo das buscas para encontrar a cruz foram descobertas três peças enterradas num poço. Para saber qual era a de Cristo foi feito um teste. Um doente foi colocado diante das três cruzes e pôs a mão em cada uma. Ao tocar a verdadeira, ficou curado. A cruz foi colocada na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, mas acabou se perdendo. Reforçando a importância dada às relíquias, o Vaticano criou a obrigatoriedade da presença de uma pedra com a incrustação da relíquia de um santo conhecido para consagrar um altar. Até o Concílio Vaticano II, os padres só podiam celebrar missa sobre essa pedra, chamada de pedra de ara.

A mais famosa e venerada das relíquias de Cristo é o Santo Sudário de Turim. Tido como o lençol no qual foi embrulhado o corpo de Cristo depois de sua morte, o tecido já foi objeto de estudos e testes científicos que não chegaram a um resultado conclusivo. Um teste de idade feito com a técnica do carbono 14, realizado em 1988 por cientistas da Universidade de Arizona, nos Estados Unidos, revelou que o pano teria sido fabricado mais de 1.000 anos depois da morte de Cristo. Mas exames posteriores, comandados por professores da Universidade de San Antonio, do Texas, constataram que o resultado do primeiro teste não era definitivo. O Santo Sudário poderia mesmo ser da época da morte de Cristo. É a única contribuição que a ciência pode dar no caso. Sabe-se que as marcas deixadas no lençol, a imagem de um homem flagelado em negativo, não foram produzidas por tinta e por nenhum processo de pintura conhecido até a época em que foi encontrado, no século XIV. Afora isso, tudo passa a ser uma questão de fé. Para a Igreja essa é a relíquia da Paixão de Cristo que merece mais credibilidade. Exposto à visitação pública no ano passado, o Santo Sudário foi visto e reverenciado por 10 milhões de devotos.
Fonte: Revista Veja - 29/04/1999

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...